Este blogue consta de uma compilação de retratos da natureza e intervenção humana em ambiente rural e urbano que O Cidadão abt vai capturando com a sua objectiva durante as caminhadas, será despejada neste blogue de muitos píxeis e poucos bitáites, dando ao ciberleitor a possibilidade de clicar sobre cada uma das fotos e de seguida na tecla F11 para melhor as poder desfrutar em ecrã total... Ligue o som e... passe por bons momentos!

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

ESTÁTICA

Pelo quarto ano consecutivo, nos dias 13, 14 e 15 de Setembro de 2013  a cidade de Tomar viu o Festival de Estátuas Vivas, desta feita, sob a égide dos grandes escritores.

Staticman
António Santos


A Dama do Pé de Cabra
 Alexandre Herculano.

Há duas versões para esta lenda, uma das quais nos reporta até à Beira Alta onde um fidalgo se apaixonou por Maria Alva, uma formosa donzela ao que o fidalgo resolvendo oferendar-lhe um par de lindos sapatos e não sabendo qual o tamanho que a sua amada calçava pois traria sempre os pés ocultos pelas longas vestes, pediu ao sapateiro da região que lhe tirasse o molde.
Na sua astúcia e sem que a dama desse por isso, este espalhou farinha sobre o percurso habitual da donzela, para que as suas pegadas denunciassem o tamanho exacto dos pés se bem qual não foi o espanto ao constar que pelo formato das marcas deixadas, Maria Alva tinha pés de cabra.
O nobre fidalgo manteve a promessa e ordenou ao sapateiro que fizesse um par de sapatinhos ao formato e medida dos pés da sua amada, os quais lhe oferendou...

Maria Alva, desgostosa por saber que todo o povo era conhecedor do seu segredo, pôs termo à vida, atirando-se da torre do castelo da povoação que tomou o seu nome.

Outra versão reza que D. Diogo Lopes, Senhor de Biscaia, sendo incansável caçador cujas intempéries não lhe causavam receios, quando certo dia perseguia um javali, ouviu uma lida melodia trazida pelo vento norte.
Olhando para a escarpa fronteira avistou uma linda donzela que cantava e encantava, oferecendo-lhe seus dotes, suas terras e seus vassalos, ao que a dama gentilmente recusou, pedindo antes em troca da sua mão, que o senhor de Biscaia  jamais se persignasse logo ali aceitando a promessa e levando a dama de sua graça Maria Alva traçada no dorso da mula que lhe servia de montada.
Quando à noite no seu castelo, o fidalgo apreciava as belas formas da desnudada Maria Alva, notou que aquela donzela teria os pés bifurcados como os de uma cabra.

Foram passando os anos com tal segredo e promessa guardados em alcofa até chegado o dia em que D. Diogo regressou de uma caçada transportando enorme javali, cuja carne serviu de faustosa ceia para todos os fidalgos e caçadores da região. Arrastava-se a orgia alimentar por altas horas da madrugada quando o fiel e enorme cão de D. Diogo impaciente com as tropelias da negra cadelita da sua dona.
A certa altura, D. Diogo atirou um osso ao seu enorme cão que viu o pescoço violentamente estraçalhado pelos dentes da pequena cadelita, caindo inanimado no salão.

Perante tal cenário e irreflectido pelo álcool, esquecendo a promessa que houvera feito há cinco anos antes, o Senhor de Biscaia benzeu-se e persignou-se... Logo a sua esposa Maria Alva soltou um enorme grito e erguendo-se no espaço, saiu por uma fresta do salão levando a sua filhinha consigo.
Anos mais tarde sem que jamais a Dama dos Pés de Cabra aparecesse, D. Diogo que jamais caçara, padecendo de desgostos entregou o governo do castelo a seu filho Inigo Guerra, partindo a combater os mouros por terras castelhanas.

Sermão de Santo António aos Peixes
Padre António Vieira

A soberba, o orgulho e a arrogância do roncador, o parasitismo do pegador, a presunção do voador e a falsidade do polvo...
Vícios ancestrais herdados pela sociedade actual.
"Passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador."
"O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar."
A sátira e a alegoria num dos seus melhores legados.

"Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes!"

Mostrengo
Fernando Pessoa
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse:

«Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quere o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
D' El-rei D. João Segundo!»

O Padrão
Fernando Pessoa

Quando os marinheiros de Diogo Cão plantaram um Padrão na margem esquerda da foz do Rio Zaire.

“O esforço é grande e o homem é pequeno
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
este padrão ao pé do areal moreno
e para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar”.


Ilha dos Amores
Luís Vaz de Camões
“Já não fugia a bela Ninfa tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas lhe dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso de alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
Oh, que famintos beijos na floresta! 
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.




Peregrinação
Fernão Mendes Pinto
“Velejando nós pelo rio acima com vento e maré que Nosso Senhor então nos deu, em menos de uma hora chegámos onde os inimigos estavam, que até este tempo nos não tinham ainda sentido; mas como eles eram ladrões e se temiam da gente da terra, pelos males e roubos que ali cada dia lhe faziam, estavam tão aparelhados e tinham tão boa vigia que em nos vendo tocaram um sino muito apressadamente, ao som do qual foi tamanho o rumor e revolta de gente, tanto da que estava em terra como da que estava embarcada, que não havia quem se ouvisse com eles o que vendo António de Faria, bradou logo, dizendo:
- Eia, senhores e irmãos meus, a eles, como nome de Cristo, antes que as suas lorchas lhes acudam! Santiago! 
E disparando toda a nossa artilharia, prouve a Nosso Senhor que se empregou tão bem que dos mais esforçados que já neste tempo estavam em cima do chapitéu, veio logo abaixo a maior parte, feitos em pedaços, o que foi um bom prognóstico do nosso desejo”.



O Alfageme de Santarém
Almeida Garrett
Fernão Vaz e D. Nuno Alvares Pereira.
O alfageme tinha o mérito de temperar e polir as espadas de aguerreação ao que, quando D. Nuno Álvares Pereira indo ao encontro de D. João I, o Mestre de Avis, terá passado pela loja do espadeiro sita na Ribeira de Santarém a fim de lhe temperarem a espada, para ambos acabarem com o conservadorismo do Conde Andeiro. Entretanto o alfageme houvera desposado a formosa Alda Gonçalves, antiga enamorada de D. Nuno Álvares Pereira que nesse fim de tarde lhe pareceu reconhecer de algum lado o rosto de Fernão Vaz.
Palavra puxa palavra e o ferreiro revelou a D. Nuno que fora ele quem desposara aquela que o Condestável tinha amado.
Sem que Alda Gonçalves o entendesse, durante toda a noite o alfageme tratou de restaurar o fio e a têmpera à espada de D. Nuno, pelo que ao se questionado por esta sobre a súbita dedicação ao ofício, o Alfageme lhe explicou as razões de tal mistério.
No dia seguinte o alfageme devolveu a espada a D. Nuno, recusando a dele receber alguma paga, premeditando que quando D. Nuno Alvares Pereira viesse a ser Conde de Ourém, logo lhe pagaria o serviço prestado.
Passaram anos de intrigas que levaram o alfageme até à condenação à morte, resolvendo Alda Gonçalves fazer-se ao caminho e pedir ajuda a D. Nuno Álvares Pereira, agora Conde de Ourém que com a grandeza do seu caracter conseguiu o perdão da pena de Fernão Vaz, assim se cumprindo a profecia do Alfageme de Santarém.


Pedro e Inês
Luís Vaz de Camões
“Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.

Tu, só tu, puro amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.


Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano”.


A Vindima
Miguel Torga
O Vitorino e a Lúcia.

 "Ao cabo de quatro dias de vindima na Arrueda, o cheiro do mosto embebedava os sentidos. 
E à noite, na cardenha, o Vitorino, com a namorada ali quase à mão de semear, não parava sobre a palha centeia, o colchão de todos. Era um rolar sem tino para um lado e para o outro, que metia aflição.
- Tu que tens? - Perguntava-lhe o Rasga, farto de conhecer a causa do formigueiro.
- Nada... - e continuava a mexer-se, cada vez mais insofrido.
Como troncos derrubados, os restantes homens da roga jaziam estendidos e adormecidos no chão. Apenas os dois amigos velavam, a vigiar-se mutuamente.
- Vou até lá fora - disse por fim o Vitorino, sem poder mais. - Não me apetece dormir...
E saiu.
Pé ante pé, o Rasga foi-lhe no encalço. E o que havia de ver? Um noivado ao luar, com a terra empapada de doçura a servir de lençol.
Passou a mão pelo restolho da barba, numa melancolia de faminto sem pão, e deixou os felizardos na paz do Senhor. 

Quando de madrugada o outro voltou à cama, só lhe disse:
- Valha-te Deus, homem! E agora?"


As Pupilas do Senhor Reitor
Júlio Diniz
João Semana é um médico inspirado no Dr. João José da Silveira que calcorreou as aldeias minhotas ao encontro dos padecentes desprovidos de dinheiro, nada cobrando pelos seus prestimos, ao ponto de lhes fazer pequenas cirurgias, fornecer medicamentos e recomendar dietas para cura das maleitas. No Tramagal, junto ao Ribeiro Seco encontramos o busto do Dr. João José Alves Mineiro que se regeu pelos mesmos princípios.


Os Maias
Eça de Queirós
Maria Eduarda, Carlos da Maia e Dâmaso Salcede... 

Algumas personagens do romance  que retratam o modus vivendi dos estereótipos da época e uma relação incestuosa... 

...que termina com a partida de Maria Eduarda para o estrangeiro...
...e Carlos da Maia viajando durante uma década pelos quatro cantos do mundo.


Auto-retrato
Bocage

“Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento”


Memorial do Convento
José Saramago
Nas procissões seguiam os penitentes que se autoflagelavam com cordas extremadas por bolas de sebo cravejadas de cacos de vidro...
demonstrando assim a sua bravura às amadas que num misto de gozo e sadismo, das sobranceiras varandas assistiam àquele penitente sofrimento.

Baltazar Sete-Sóis e o Padre Bartolomeu de Gusmão...
Personagens de Memorial do Convento e confidentes que discutiam problemas de existencialismo...

Se Deus seria maneta como Sete-Sóis e porque os pássaros voariam. Rapaz magro, alto e avantajado de orelhas, Sete-Sóis era um soldado inválido que terá perdido a mão esquerda durante a Guerra da Sucessão Espanhola... e se apaixonara por Blimunda Sete-Luas...

Sendo quem ajudou Bartolomeu de Gusmão a conceber a passarola voadora que levantando voo em Mafra, terá caído para as bandas do Terreiro do Paço.

Interessante diálogo entre D. João V e o Almoxarife...
“Ficou o rei que está em sua casa, agora esperando que regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes in-fólios. Então diz-me cá como estamos de deve e de haver. 
O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer. Saiba Vossa majestade que haver, havemos cada vez menos e dever, devemos cada vez mais. Já no mês passado me disseste o mesmo. E também no outro mês, e no ano que já lá vai por este andar ainda acabamos por ver o fundo do saco, majestade. Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na India, quando se esgotarem vamos sabe-lo com tão grande atraz oque poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos. Se vossa majestade me perdoa o atrevimento eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos. 
Mas graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado. Pois não e a minha experiência contabilística lembra-me que op pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe e o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cú, com perdão de vossa majestade. Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres dizer na tua que a merda é dinheiro. Não majestade, é o dinheiro que é merda, e eu estou em muito boa posição para o saber, de cócoras, que é como sempre deve estar quem faz as contas ao dinheiro dos outros”


Frei Luís de Sousa
Almeida Garrett
Diálogo entre Madalena de Vilhena e o Romeiro, (o desaparecido D João de Portugal)
Madalena – (...) a todos se encomendava o seguir a pista do mais leve indício que pudesse desmentir, pôr em dúvida ao menos, aquela notícia que logo viera com as primeiras novas da batalha de Alcácer. (...)
Manuel – (...) Rezaremos por alma de D. João de Portugal nessa devota capela que é parte da sua casa; e não hajas medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no Céu, e que em tão santa batalha, pelejando por seus Deus e por seu rei, acabou mártir às mãos dos infiéis. (...)
Madalena (na maior ansiedade) - Deus tenha misericórdia de mim! E esse homem, esse homem, Jesus! Esse homem era... Esse homem tinha sido... Levaram-no aí de onde? De África?
Romeiro - Levaram.
Madalena - Cativo?
Romeiro - Sim.
Madalena - Português? Cativo da batalha de?
Romeiro - De Alcácer Quibir.



 Cantigas d’Amigo
Pero Viviaez
Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos de andar
con nossas madres, e elas enton
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.
Nossos amigos todos lá irán
por nos veer, e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas en cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.
Nossos amigos irán por cousir
como bailamos, e podem veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres pois lá queren ir,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Crónica de D’ElRey D. Afonso V
Rui de Pina
“O Príncipe D. Afonso posto em vestiduras reais, bem acompanhado de todos, saiu fora ao assentamento, onde pelo Infante d. Pedro com grande reverência, e muito acatamento foi posto na cadeira real (...).Muito alto e muito excelente Senhor, assim como vos eu hoje ponho nesta seda, em que vós por graças de Deus legitimamente recebeis o Real Septro e senhorio d’estes vossos reinos, assim espero com sua ajuda e minha grande lealdade de vo-los ajudara manter e defender com todas as minhas forças e poder e saber quando me vossa mercê mandar, ou eu sentir que cumpre a vosso estado e serviço. (...)com a bandeira real levantada e os reis d’armas e arautos com ele começaram ali a sua grita, e com ela foram pela villa, repetindo-a três vezes, segundo o costume, com toda aquela cerimónia e solenidade que a tal auto real pertencia.”


Crónica de D. João I
Fernão Lopes
“Conde, eu me maravilho muito de vós serdes homem a quem eu queria bem e de vos trabalhardes em minha desonra e morte.
Eu, senhor!-disse ele- Quem vos tal cousa disse mentiu-vos grande mentira.

O Mestre, que mais vontade tinha de o matar do que estar com ele em razões, tirou logo um cutelo comprido e enviou-lhe um golpe à cabeça, mas não era a ferida tamanha que dela morresse se mais não houvera. Os outros que estavam em redor, quando isto viram, puxaram logo das espadas para lhe dar, e movendo-se ele para se acolher à câmara da Rainha com aquela ferida, Rui Pereira que estava mais perto varou-o com um estoque de armas, do que logo caiu morto por terra.
Os outros quiseram-lhe dar mais golpes, mas o Mestre disse que estivessem quedos, e ninguém foi ousado de lhe dar mais, e mandou logo a FernandÁlvares e Lourenço Martins que fossem cerrar as portas para que ninguém entrasse, e que dissessem ao seu Pajem que fosse correr pela villa bradando que matavam o Mestre, e eles assim o fizeram”.



Farsa de Inês Pereira
Gil Vicente
Pêro Marquez  e Inês Pereira

INÊS
Em tudo é boa a concrusão. Marido, aquele ermitão É um anjinho de Deus...
PÊRO
Corregê vós esses véus E ponde-vos em feição.
INÊS
Sabeis vós o que eu queria?
PÊRO
Que quereis, minha mulher?
INÊS
Que houvésseis por prazer De irmos lá em romaria.
PÊRO
Seja logo, sem deter

INÊS
Este caminho é comprido... Contai uma história, marido.
PÊRO
Bofá que me praz, mulher
INÊS
Passemos primeiro o rio. Descalçai-vos.
PÊRO
E pois como?
INÊS
E levar me-eis no ombro, Não me corte a madre o frio.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:
INÊS
Marido, assi me levade.
PÊRO
Ides à vossa vontade?
INÊS
Como estar no Paraíso!
PÊRO
Muito folgo eu com isso.
INÊS
Esperade ora, esperade! Olhai que lousas aquelas, Pera poer as talhas nelas!
PÊRO
Quereis que as leve?
INÊS
Si. Uma aqui e outra aqui. Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?
PÊRO
Eu não saberei entoar..
INÊS
Pois eu hei só de cantar E vós me respondereis Cada vez que eu acabar: «Pois assi se fazem as cousas». Canta Inês Pereira:
INÊS
«Marido cuco me levades E mais duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
INÊS
«Bem sabedes vós, marido, Quanto vos amo. Sempre fostes percebido Pera gamo. Carregado ides, noss'amo, Com duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas»

INÊS
«Bem sabedes vós, marido, Quanto vos quero. Sempre fostes percebido Pera cervo. Agora vos tomou o demo Com duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»

...Agora vá descobrir a Alice, na estática dos pequenitos...